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Da série: Encontrei na universidade.

O professor está falando sobre a ciência. As palavras parecem ser ignoradas. A calça jeans, blusa de manga, cabelo liso, mãos nervosas e uma caneta fazendo círculos em seu caderno. Seus olhos pairam sobre a sala. Respira fundo. Não demonstra qualquer interesse. Talvez esteja tentando liberar sua angustia: A folha está uma bagunça de círculos. A classe está cheia, são sessenta alunos. Alguns têm a leve impressão que conhece o outro. Ela acabara de me contar seus problemas: Está grávida aos vinte anos. Ninguém sabe até agora, só eu. "Minha mãe vai me matar". Não há como não se pré-ocupar. Os círculos continuam a preencher as linhas, está cheia -a folha e ela. Cheia de pensamentos, de aborrecimentos, de futuro. Como se já não bastasse seu pretérito imperfeito. "Vou abortar!". Gelei. Seria fácil ter o problema morto. Logo depois ela desistiu. Continua rabiscando -gritando por dentro. Os minutos se transformaram em horas, a aula não acaba. A folha está cheia de círculos, e ela resolve começar tudo de novo. Vira a página. Mais uma atitude que esclarece seu eu: Começar tudo de novo. O novo. Alguém fala com ela. Ao responder, sorri. Sorriso. Só-riso? Não. A conversa continua. Quem emite a fala não sabe o que há por dentro da receptora. É... Alguns têm a leve impressão que conhece o outro.

Você é...

Você é a minha encrenca, o meu “não posso” e também meus desejos. Você é a minha ansiedade, o mal e até o meu problema. É o não ter encrencando com o querer, o meu id se realizando, o meu pecado, o me tornar livre. Você é a sua mão pesada em torno da minha nuca, seu braço em torno do meu corpo, é meu aperto de cabelo, é o seu jeito de sorrir torto. É a ânsia do beijo, o piscar dos olhos se declarando e a boca contendo ao redor aquela barba mal feita que eu adoro. Você é meu sorriso quando sou pega de surpresa pela vida e te encontro, ou quando insisto em te ver e vou a tua procura só para te olhar, para observar de longe, sem poder te tocar como sonho todas as noites. Você é a minha realização pessoal mais difícil. Você é o canalha que me desconserta e o sacana que me tira do sério. O aproveitador de sentimentos puros, o moleque que não estava nos planos. Você é meu em meus pensamentos, e o sou tua quando penso em ti. É o meu querer involuntário, é o futuro tão presente, as alucinações, as insistências com suas palavras. Você é o que me cerca, as lembranças dos encontros escondidos e a vontade de viver tudo que idealizo. É a facilidade em me ter, as ilusões, as promessas não cumpridas, as noites mal dormidas, as minhas insônias. Você é a culpa que sinto por te querer, é a luta que tenho por dentro. São as palavras no ouvido, mesmo sabendo que não podemos, são os dias que passo distante, são os raros momentos juntos, são os problemas que nos separaram. Você é a realização do meu futuro tão sonhado... 

Da série: Encontrei no ônibus.

O dedo na boca e a outra mão segurando fortemente o banco da frente, como quem precisa agarrar-se a algo, ou alguém. Está voltando do trabalho, o cabelo foi cortado tem pouco tempo, sua estatura é mediana. Seu psicológico transparece no seu rosto cansado. As roupas foram colocadas após passar horas mexendo em um cimento. As suas mãos, que agora estão limpas, não param. As unhas estão sendo roídas pela ansiedade que está passando. Os olhos estão vermelhos, foi uma noite mal dormida por conta dos  pensamentos. A mochila está pesada, como quem estivesse representando a sua própria vida que ele carrega com tamanha dificuldade. A põe no colo entre suas mãos nervosas. É uma espécie de abraço, dizendo: "Não vou te largar vida". A força parece estar desgastada, não sei distinguir se pelo trabalho ou pelos problemas. O pensamento viaja, ele com certeza está longe. Suas pernas estão em movimento, não param nenhum segundo. Respira forte, fecha os olhos. Quantas coisas estão passando naquela cabeça? Quando abre os olhos ele decide abrir também todas as janelas, como quem precisasse de ar, de espaço, de sentir a liberdade. Com certeza queria estar livre daquilo tudo. Aquilo, que eu não sei o que é, mas que seu corpo demonstra claramente. Há uma aflição, ou problema, até uma angustia, vai saber... Sua cabeça diz não. O que ele nega? Algo que fez e não aceita? Talvez só não queira chegar em casa. Suas pernas pararam, sua boca deu trégua as unhas. O que ele pensou para conseguir se acalmar? Ele fecha os olhos, coloca o rosto na maior janela, respira fundo e se prepara para levantar-se. Acho que não pensou em nada, o corpo parou pelo simples fato de ter que ir. Dá o sinal, abaixa a cabeça, e mesmo não querendo ir, ele vai... Sobre sua força estar desgastada: É mentira. Ele foi forte, ele foi!